A Secretária de Gestão Administrativa do Ministério das Relações Exteriores, Embaixadora Cláudia Buzzi em entrevista a RGB desta semana, fala sobre o trabalho que está desenvolvendo no Itamaraty em governança. Para ela o maior desafio são os servidores públicos lotados em diversos países e conta como estão vencendo esta barreira.
Nos últimos anos, temos observado que a Governança Pública tem ganhado destaque em diversos países. Na sua visão, o que é a Governança no setor público?
O termo Governança tem sido cada vez mais usado, tanto no setor público como no setor privado, muitas vezes como sinônimo de boa governança ou de boa gestão.
No Itamaraty encaramos Governança em seu sentido técnico, como o conjunto de mecanismos de liderança, estratégia e controle usados para direcionar e avaliar a atuação das unidades do Ministério, com vistas a garantir um desempenho eficiente e eficaz na promoção dos interesses brasileiros no cenário internacional e na prestação de serviços aos cidadãos no Brasil e no exterior.
O Ministério das Relações Exteriores é conhecido por fazer trabalhos de excelência em termos de gestão. Como o MRE tem tratado da Governança no seu Comitê de Governança, Riscos e Controle?
O CGRC é a mais alta instância de deliberação sobre questões relativa à Governança no Itamaraty. Apesar da agenda dinâmica dos integrantes do CGRC – o Comitê é presidido pelo Ministro de Estado e conta com a participação das principais chefias do Ministério – temos buscado manter reuniões regulares.
São levados à deliberação no CGRC os assuntos transversais relacionados ao direcionamento e ao controle da atuação das unidades do Ministério, com vistas a implementar novos mecanismos de Governança e de gestão de riscos ou a avaliar aqueles em funcionamento.
Recentemente o CGRC aprovou a implementação da nova metodologia de planejamento estratégico do Itamaraty, cujos primeiros resultados já foram entregues e que passarão por nova avaliação na próxima reunião do Comitê, a ser realizada em agosto. Trata-se de exercício que se consolida como instrumento importante para trazer a questão da Governança ao centro decisório no Itamaraty, garantindo continuidade, legitimidade e transparência aos mecanismos que visam à coordenação das ações das mais de duzentas unidades do Ministério no Brasil e no exterior.
Como é o desafio de trabalhar a governança com servidores públicos lotados em diversos países?
Esse é, sem dúvida, um dos maiores desafios do Itamaraty e das demais chancelarias no mundo.
Esse desafio se apresenta, principalmente, por três razões; i) a primeira e mais importante é o amplo leque de temas políticos, econômicos, culturais e consulares com os quais as diversas unidades do Itamaraty tem que lidar; ii) a segunda é a necessidade de conjugar diferentes formas e costumes de trabalho em mais de 180 países nos quais temos representação; e iii) garantir que o sistema de Governança seja resiliente à constante mobilidade de pessoal entre todas as unidades no Brasil e no exterior.
Por contar com quadros de excelente qualidade e com uma estrutura funcional tradicionalmente disciplinada, o Itamaraty não tem tido dificuldades em adequar-se constantemente aos mecanismos de Governança mais modernos, sempre adaptados às necessidades de flexibilidade e resiliência comuns às chancelarias.
O fato de os servidores do Ministério estarem em constante contato com representantes de outros governos e de empresas com alcance internacional tem contribuído de forma importante para a atualização dos meios de Governança e de atuação do Ministério.
A sociedade brasileira tem exigido cada vez mais do governo a prestação de serviços com qualidade. Nos próximos meses, a tendência é termos restrições orçamentárias e poucos concursos públicos em função da atual crise. Como o Itamaraty pretende manter suas atividades nesse contexto?
Nosso orçamento representa cerca de 0,1% do orçamento total do Poder Executivo e com ele o Itamaraty mantém uma rede de 214 postos em 130 países, 9 escritórios regionais no Brasil, oferece apoio a 105 adidâncias de 7 órgãos do governo federal no exterior, bem como suporte a 9 escritórios da Apex-Brasil em 4 continentes. Nossa execução orçamentária beira os 99%.
Como os demais órgãos do governo federal, temos sido afetados nos últimos anos por importantes restrições orçamentárias. Nesse contexto, Governança é a palavra-chave para aprimorar a eficiência do uso dos recursos públicos e, assim, manter a eficácia das atividades de promoção dos interesses brasileiros e da prestação de serviços à população.
A expectativa no Itamaraty é de que será possível manter o tradicional concurso do Instituto Rio Branco para, no mínimo, preencher as vagas abertas em razão de aposentadorias, demissões ou falecimentos de servidores.
Em 2020, o Ministério das Relações Exteriores aderiu Programa de Gestão Estratégica e Transformação do Estado - TransformaGov. Quais os principais objetivos desse programa para o MRE?
A implantação do TransformaGov no Itamaraty, em parceria com o Ministério da Economia, visa, principalmente, dois objetivos – modernizar a gestão estratégica do Ministério e dar mais eficiência ao uso dos recursos públicos.
A modernização da gestão estratégica tem sido promovida por meio de uma ampla reforma no sistema de planejamento. Construímos, com a contribuição de todas as unidades e com apoio técnico de consultoria contratada pelo Ministério da Economia, a cadeia de valor integrada do Itamaraty e, a partir dela, alinhamos a estrutura organizacional do Ministério.
Ao mesmo tempo, iniciamos a formulação do novo Plano Estratégico Institucional e de nova sistemática de elaboração, controle e avaliação de objetivos, metas e indicadores, aplicáveis às unidades no Brasil e no exterior.
No que tange ao aumento da eficiência dos recursos públicos, o Itamaraty tem concentrado esforços em projetos e reformas que reduzam a atividade burocrática/administrativa das áreas finalísticas, permitindo que concentrem seus esforços na realização de suas missões institucionais.
Para isso, o Itamaraty tem buscado ampliar a competência de suas unidades de gestão administrativa, bem como torná-las cada vez mais especializadas, para que assumam tarefas burocráticas atualmente realizadas por unidades finalísticas. Como exemplos importantes de medidas no âmbito do TransformaGov nesse ponto podemos citar a conexão do sistema de gestão de documentos do Itamaraty ao Processo Eletrônico Nacional; a nova normativa de gestão de imóveis próprios nacionais no exterior~; e a centralização de contratações e de oferta de serviços compartilhados.
Como o Ministério das Relações Exteriores trabalha a formação de lideranças? Como se desenham as trajetórias das carreiras dos diplomatas do MRE?
O Ministério das Relações Exteriores tem uma longa tradição de formação de lideranças por mecanismos institucionais. Esses mecanismos têm sido exitosos em formar líderes que se destacam, ao longo da história brasileira, tanto no Itamaraty quanto em outros órgãos do governo federal, sendo vários os casos de diplomatas que ocuparam os mais altos cargos em outros Ministérios e agências governamentais.
O sistema de formação de lideranças no Itamaraty se apoia, historicamente, em três alicerces: i) formação inicial e durante toda a carreira diplomática no Instituto Rio Branco; ii) ocupação de todos os cargos de chefia da instituição por servidores de carreira; e iii) promoção na carreira com base no mérito profissional.
Desde a entrada no Instituto Rio Branco o diplomata é formado para ocupar posições de liderança no Ministério, tanto em unidades no Brasil quanto no exterior. Ademais, para alcançar as classes de Primeiro Secretário e de Ministro de Segunda Classe o diplomata precisa completar o Curso de Aperfeiçoamento de Diplomatas (CAD) e o Curso de Altos Estudos (CAE), respectivamente. Além dos cursos obrigatórios, os diplomatas são constantemente estimulados a participarem de cursos de línguas e de gestão, oferecidos tanto pelo Itamaraty como por outros órgãos do governo federal.
Após a primeira promoção, de Terceiro a Segundo Secretário, realizada conforme a antiguidade, todas as demais promoções da carreira diplomática são realizadas com base no mérito profissional, avaliado em processo amplo que envolve tanto seus pares de classe como os chefes das unidades do Ministério em todos os níveis. Esse método se assemelha a um dos métodos de avaliação mais utilizados no setor privado, conhecido como “avaliação 360 graus”.
Além de ter como base o mérito, as promoções no Itamaraty são limitadas às vagas efetivamente existentes em cada classe da carreira diplomática, o que estimula a competição saudável interna ao mesmo tempo em que busca equilibrar as quantidades de diplomatas em cada classe e portanto, equilibrar o números de chefes e de subordinados.
A assunção de posições hierarquicamente mais altas na estrutura do Ministério está ligada diretamente à classe que o diplomata ocupa, garantindo que os servidores assumam apenas funções compatíveis com sua experiência profissional.
O Itamaraty passou por complexos desenvolvimentos institucionais ao longo de sua história, sendo influenciado e simultaneamente impactando mudanças nos processos de profissionalização do serviço público Nacional. Como o Instituto Rio Branco tem trabalhado para formar os quadros diplomáticos de acordo com as atuais necessidades de capacitação?
O Instituto Rio Branco tem procurado, ao longo de suas sete décadas, adaptar as atividades de formação às necessidades dadas por cada momento histórico. Esse processo de adaptação ocorre mediante a atualização de grades curriculares e tem caráter permanente.
A atual grade curricular toma em consideração o perfil das turmas recentes, que têm como características principais a alta qualificação e a maturidade de seus integrantes, que contam com sólida formação acadêmica, inclusive em nível de pós-graduação, e média de idade em torno de 30 anos. Essa situação é produto do alto grau de exigência do Concurso de Admissão, que demanda, em regra, anos de preparação específica, e da expansão do ensino universitário no Brasil, com destaque, nas últimas décadas, para a consolidação dos cursos de relações internacionais, nos quais são formados cerca de 30% a 40% dos candidatos aprovados no concurso.
A grade curricular observa um balanço entre disciplinas profissionalizantes e acadêmicas, com ênfase em temas da agenda internacional contemporânea, de ordem política e econômica. Podem ser mencionadas, como disciplinas profissionalizantes, “Linguagem Diplomática”, “Técnicas de Negociação”, “Prática Consular” e “Promoção Comercial”, que são ministradas em combinação com matérias clássicas como “História da Política Externa Brasileira” e “Direito Internacional”. Mesmo no caso dessas últimas, o enfoque que se procura dar combina dimensões teórica e prática, recorrendo-se, para tanto, ao concurso de diplomatas com experiência em áreas específicas. A título de ilustração, as matérias “Técnicas de Negociação” e “Prática Consular” são ministradas, no momento, pelo Secretário de Negociações Bilaterais no Oriente Médio, Europa e África, e pela Diretora do Departamento Consular, respectivamente.
A Lei 11.440/06, que rege o Serviço Exterior Brasileiro, estabelece que o Instituto Rio Branco é responsável pela organização e execução do curso de formação e de cursos de aperfeiçoamento dos integrantes da carreira diplomática. São oferecidos, no momento, o Curso de Aperfeiçoamento de Diplomatas, para segundo-secretários, e Curso de Altos Estudos, para conselheiros. A conclusão desses cursos constitui requisito para promoção na carreira. Atribui-se, no caso desses cursos, alta relevância a sua dimensão profissional. São tratados, no Curso de Aperfeiçoamento de Diplomatas, temas relacionados a diplomacia econômica e comercial; assuntos consulares e migratórios; administração pública e gestão do Ministério das Relações Exteriores; negociações políticas bilaterais; e defesa e segurança. O Curso de Altos Estudos implica a redação e sustentação, perante uma banca integrada por cinco embaixadores, de uma tese, sobre tema de relevância para a política externa brasileira. Muitas dessas teses são publicadas pela Fundação Alexandre de Gusmão, com base em recomendação da banca.
Um dos principais desafios de qualquer chancelaria, quando se trata de planejamento estratégico, diz respeito à determinação da eficiência. Não se mede a eficiência da diplomacia como se mensura a eficácia de uma campanha de vacinação, ou seja, pela quantidade de crianças alcançadas. Como a atual gestão do Itamaraty tem trabalhando em termos de indicadores de gestão do órgão?
O Itamaraty avalia, há décadas, a eficiência de suas atividades, tendo cuidado especial em fazê-lo com os postos no exterior.
O sistema atualmente utilizado tem sido o mesmo que é aplicado por diversas chancelarias, qual seja, a determinação das ações estratégicas, o envio de instruções específicas ao longo de determinado período e o recebimento de relatos de atividades das unidades no exterior. Esse método é particularmente útil no caso de ações de longo prazo, uma vez que o tempo na atividade diplomática é usualmente mais longo e precisa ser considerado de forma diferente do que em outras atividades, como as citadas na pergunta.
No âmbito do TransformaGov, no entanto, o Ministério está formulando novo sistema de planejamento estratégico. A eficiência da atividade diplomática e da execução da política externa, precisa, no entanto, ser verificada de maneira adequada, uma vez que seus objetivos são muitas vezes difusos e seus prazos são, na maioria das vezes, longos.
Nesse contexto, temos trabalhado com a separação das metas e dos indicadores de desempenho em duas categorias: i) de meio e; ii) de resultado.
A primeira categoria se refere àqueles sobre os quais a atuação da unidade tem influência mas não é integralmente responsável pelo resultado final. Dessa forma, as metas e indicadores devem ter relação com o emprego dos recursos diplomáticos, financeiros e técnicos para a obtenção do objetivo almejado, sem, no entanto, haver responsabilidade integral por alcançá-lo.
A segunda categoria se refere aos objetivos sobre os quais a atuação da unidade é integralmente responsável pelo resultado final. Nesse contexto, as metas e indicadores devem ter relação com o emprego dos recursos diplomáticos, financeiros e técnicos para a obtenção do objetivo almejado, bem como com a verificação e medição do resultado alcançado.
O Brasil está trabalhando para ser aceito na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Na sua visão, o setor público brasileiro tem muito a evoluir a partir da adesão do país à OCDE?
O setor público brasileiro já tem se beneficiado consideravelmente da relação do País com a OCDE. Antes mesmo de o governo brasileiro tomar a decisão definitiva de aceder à OCDE, o Itamaraty e outros órgãos governamentais, como o TCU, por exemplo, já mantinham programas e projetos com a Organização.
A decisão de aceder à OCDE deu, claro, um significativo impulso às parcerias do Brasil com o organismo. É crescente o número de órgãos que têm participado de cursos e parcerias da OCDE, bem como de exercícios de “Peer Review” no âmbito da gestão administrativa.
A adesão definitiva à Organização trará ainda mais benefícios, uma vez que ampliará o número de programas, projetos e ferramentas à disposição do governo brasileiro, não só na área de gestão administrativa, mas também em diversas áreas finalísticas.
Se você tivesse que dar uma dica para quem quer trabalhar com Governança no setor público hoje, qual seria?
Hoje em dia o mais importante para um gestor público hoje em dia é não ter medo de inovar. Devemos todos pensar maneiras eficientes de criar valor público, ou seja, de responder de forma eficaz às demandas e interesses da sociedade, gerando resultados concretos.
É isso que tenho visto entre os melhores gestores do Itamaraty, dos demais órgãos do governo federal e entre nossos pares ao redor do mundo.
A Embaixadora Cláudia Fonseca Buzzi, nascida em Presidente Prudente/SP, em 31 de julho de 1962, é graduada em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Concluiu o Curso de Preparação à Carreira de Diplomata em 1986.
Sua primeira experiência profissional como diplomata foi na área de administração, na então Divisão de Cadastro e Lotação, hoje Divisão do Pessoal. No Brasil, foi também assessora no Departamento da Ásia e Oceania (1990-1991) e no Cerimonial (1995-1996). Após 2 anos como subchefe da Divisão de América Meridional – I (1996-1998), trabalhou na Secretaria-Geral das Relações Exteriores (1999-2001), onde foi responsável, entre outros temas, pela administração da unidade. No período de 2009 a 2012 se desempenhou como coordenadora na Assessoria Especial de Assuntos Federativos e Parlamentares (AFEPA, 2009-2012), chefe de gabinete na Subsecretaria-Geral das Comunidades Brasileiras no Exterior (2012-2014), e chefe de gabinete na Secretaria-Geral das Relações Exteriores (2015-2017).
No exterior, serviu na Embaixada em Buenos Aires em dois períodos: no primeiro, de 1991 e 1995, quando chefiou o Setor de Administração da missão, e entre 2002 e 2006, à frente do Setor Cultural da Embaixada. Serviu também no Consulado-Geral em Buenos Aires, como cônsul-geral adjunto e chefe do Setor de Relações com a Coletividade (2006-2009), e como Cônsul-Geral (2017-2019).
Ao longo de toda a sua carreira, nas diversas funções e cargos que exerceu, em áreas diversificadas, o tratamento de assuntos relacionados à administração ocuparam um lugar expressivo e a qualificaram a ocupar a Secretaria de Gestão Administrativa.
Dentre as condecorações recebidas, destacam-se o Mérito Santos Dumont, em 2000, o Mérito Tamandaré, em 2000, o Mérito Alvorada, em 2001, e foi agraciada com a Grã-Cruz da Ordem do Rio Branco, em 2017.
Publicado em: 30 de julho de 2020.
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