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Governança: Entrevista com Diretor Presidente da Valec, André Kuhn

‘‘Para quem quer trabalhar com governança, eu recomendo se preparar intelectualmente, desenvolver habilidades de liderança, acreditar nas melhores práticas de gestão e ter muita paciência, pois estamos falando de mudança de hábitos organizacionais, e os resultados não aparecem de forma imediata, eles exigem comprometimento e disciplina de todos."


Na sua visão, o que é a governança no setor público?


O objetivo principal das entidades públicas é atender, de forma adequada, as necessidades de seu principal cliente: a sociedade. Para isso, deve-se dispor das melhores práticas de gestão e assegurar o correto uso dos recursos públicos para atingir seus objetivos, de forma transparente, ética, eficiente e responsável. Sendo assim, o processo de seleção dos gestores deve garantir que os escolhidos tenham um perfil de liderança e preparo técnico, gerencial e legal proporcional às suas atribuições.


Considerando a sua experiência no setor público, como você vê a evolução da governança no governo federal brasileiro nos últimos 20 anos? É um conceito que já faz parte do dia a dia dos servidores?


Atuo há quase 25 anos diretamente com obras públicas, passando por cargos de gestão no Ministério Público Federal, no Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) e atualmente na Valec, e posso afirmar que a administração pública federal evoluiu significativamente, tendo como indicadores dessa melhoria a adoção do planejamento estratégico como ferramenta de gestão, a ampliação dos mecanismos de controle, o emprego de políticas de integridade e os crescentes investimentos em capacitação de pessoal. Lembro de quando comecei a trabalhar com licitações de obras públicas e, apesar do bom conhecimento técnico proporcionado pelo Instituto Militar de Engenharia, desconhecia as normas gerais de licitações e as melhores práticas de gestão. Hoje, observo o cuidado de diversas instituições em capacitar o seu pessoal, principalmente os que estão começando na carreira pública.


Quais os maiores desafios da implementação da governança nas empresas estatais?


O cenário atual da administração pública tem como diretriz o enxugamento da máquina administrativa e a melhoria de sua eficiência. Uma empresa estatal deve ter capacidade de produzir resultados com recursos cada vez mais escassos, buscando sua independência do orçamento público mediante criação de receita e redução de gastos. Aliado a isso, a tendência é retirar da administração pública as atividades que podem ser desenvolvidas pela iniciativa privada. Nesse contexto, cabe à empresa estatal buscar atividades e oportunidades de negócio que devem ser necessariamente desenvolvidas pelo poder público. Como exemplo, temos as atividades que envolvem modelagem de concessões, plano de logística nacional, estudos de viabilidade e demais trabalhos estratégicos, cuja atuação da iniciativa privada possa caracterizar algum tipo de conflito de interesse ou direcionamento diverso do interesse público.


Para isso, a empresa estatal deve adotar as melhores práticas de gestão, implementar uma política de integridade forte, buscar continuamente oportunidades de negócio onde o privado não tem interesse em atuar, justificando para a sociedade a necessidade de sua existência.


Estamos vivendo hoje uma grave pandemia mundial. Na sua visão, quais consequências a atual crise deverá trazer para o setor público brasileiro?


Estamos vivenciando um período de aprendizagem. Com a evolução tecnológica, hoje é possível realizar uma série de atividades de forma remota, tais como cursos de capacitação; reuniões de trabalho; análises processuais e outras mais. Contudo, há uma reação natural das pessoas quanto ao novo e, apesar de a pandemia não poder ser considerada em hipótese nenhuma como algo bom, os ensinamentos e mudanças de hábito organizacional ficarão. Com a necessidade do distanciamento social e o trabalho remoto, a pandemia acelerou um processo de redução de gastos com diárias e passagens e de aluguel de espaços físicos amplos. Vejo isso como uma oportunidade de revermos nossa forma de trabalhar, quebrando paradigmas e percebendo que podemos produzir melhor com menos recursos. Até mesmo porque os gastos públicos com a pandemia estão sendo extremamente elevados, e a conta recairá sobre os ombros dos contribuintes.


Um dos comitês da Rede Governança Brasil trata das estatais. O que podemos esperar dos trabalhos desse grupo?


Faço parte do Comitê das Estatais, e muitas ideias estão surgindo. Considerando a experiência profissional e a formação dos integrantes do comitê, o material a ser produzido, tais como artigos, publicações e manuais, será de grande valia para os que atuam na gestão de empresas públicas. Entre os assuntos que estão em discussão, a integridade tem um peso significativo, e ela deve nortear todas as ações dos empregados públicos. Tenho convicção que devemos começar pela melhoria das políticas de integridade para que a gestão das estatais evolua.


Quais os objetivos da gestão da Infra SA no médio e longo prazo?


Em seus pronunciamentos, o Ministro Tarcísio deixa bem claro quais são os objetivos da criação da Infra SA: uma empresa enxuta para planejamento de longo prazo e estruturação de projetos, atividades estratégicas que devem ser desenvolvidas por um braço público. A junção da Valec e da EPL irá gerar uma economia imediata com a unificação da área administrativa, e a sinergia criada proporcionará uma independência de orçamento público a médio prazo.


Quais as expectativas de investimentos nas ferrovias brasileiras para os próximos anos?


Atualmente, a participação das ferrovias no transporte de cargas do Brasil é em torno de 15%, sendo a meta do Ministério da Infraestrutura dobrar essa participação em 8 anos. A escassez de orçamento público para investimentos em infraestrutura ferroviária está sendo driblada com o uso de investimentos cruzados como o caso renovação antecipada de contratos das estradas de Ferro Vitória a Minas (EFVM) e Carajás (EFC), permitindo a construção do primeiro trecho da Ferrovia de Integração Centro Oeste (FICO) pela Vale, além de prever o fornecimento dos trilhos e dormentes para continuação das obras da Ferrovia de Integração Oeste Leste (FIOL), na ordem de grandeza de 400 milhões de reais. A Valec já recebeu recursos orçamentários adicionais em 2020, no valor de 144 milhões de reais, com expectativa de garantir para 2021 em torno de 400 milhões do orçamento federal.


Quais os principais benefícios esperados pela aplicação do Building Information Modeling (BIM) nas obras públicas brasileiras?


Lembro que em meados de 1997, quando cheguei na Comissão de Obras da 3º Região Militar do Exército em Porto Alegre, propus fazer o primeiro edital de licitação de obras utilizando projetos desenvolvidos em Cad (desenho no computador), pois, à época, todos eles eram desenhados a nanquim. Nessa transição, o desenhista teve que se adaptar e aprender a desenhar no computador, tornando-se um “cadista”, como é conhecido o desenhista em Cad. Com o advento do BIM, a transição é mais complexa, pois não há mais a figura do desenhista, pois todos os projetistas das diversas disciplinas devem trabalhar juntos, num mesmo ambiente virtual, georrefenciado e tridimensional. Apesar das dificuldades de adaptação, as vantagens são enormes, pois boa parte dos erros de interface entre as disciplinas são sanados na etapa de projeto.

Além disso, pode-se vincular as partes dos projetos às especificações técnicas e ao orçamento, facilitando a vida do responsável técnico, principalmente quando há necessidade de ajustes de projeto, otimizando o tempo com incremento de qualidade. Sabemos que uma das principais causas de aditivos contratuais em obras públicas é a deficiência de projetos básicos, e o BIM traz como principal contribuição, desde que bem implementado, projetos melhores e mais precisos.


A Lei nº 8.666/1993 completou recentemente 27 anos. Chegou a hora de aposentar a 8.666? Como você vê o processo de modernização das compras públicas no Brasil?


Está em fase final de tramitação no Congresso Nacional a nova Lei de Licitações e com ela a esperança de que os processos licitatórios e de gestão de contratos públicos sejam mais eficientes. Contudo, apesar da importância do processo licitatório, o grande segredo de se ter contratos executados no prazo, com qualidade e dentro dos custos previstos, está no antes, ao elaborar editais, projetos básicos e termos de referência adequados; e no depois, ao se fiscalizar bem a execução do objeto contratado. A grande crítica que faço à Lei nº 8.666/93 é na sua rigidez do rito processual, dando poucas oportunidades de inovação na regulamentação de procedimentos internos. Conforme as boas práticas de gestão, deve-se ajustar o rito e o processo às necessidades de cada situação, mas a lei atual não permite muitos ajustes, exigindo, muitas vezes, o mesmo procedimento para contratações, seja para objetos simples de pequeno vulto como para objetos complexos e de grande vulto. A Lei das Estatais obteve avanços significativos, aproveitando muitos mecanismos previstos na Lei do RDC, sendo a experiência adquirida na aplicação dessas duas leis um laboratório para as inovações previstas para a nova lei geral de licitações e contratos públicos.


Quais dicas você daria hoje para quem quer trabalhar com governança no setor público?


Como dicas para quem quer trabalhar com governança, eu recomendo se preparar intelectualmente, desenvolver habilidades de liderança, acreditar nas melhores práticas de gestão e ter muita paciência, pois estamos falando de mudança de hábitos organizacionais, e os resultados não aparecem de forma imediata, eles exigem comprometimento e disciplina de todos. Mas uma coisa é certa: os resultados a serem alcançados valem todo o esforço. Não desanimem e boa sorte.



André Kuhn - MSc – CRK – profissional certificado por Notório Saber em Engenharia de Custos pelo International Cost Engineering Council – ICEC. Mestre em Engenharia Civil na Universidade Federal Fluminense (UFF) (Tema de Dissertação: “Qualidade e Licitação de Obras Públicas: uma Análise Crítica”); graduado em Engenharia de Fortificação e Construção (Engenharia Civil) no Instituto Militar de Engenharia (IME); Bacharel em Ciências Militares pela Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN). Pregoeiro habilitado pela 11º Inspetoria de Contabilidade e Finanças do Exército. Palestrante em cursos e seminários sobre Licitações e Contratos de Obras Públicas; professor de pós-graduação do Ibmec; Pesquisador do “Engineer Research and Development Center” (ERDC), do Corpo de Engenheiros do Exército Americano (USACE), em 2007; até 2011, Tenente Coronel do Quadro de Engenheiros da DOC (Diretoria de Obras de Cooperação do Exército Brasileiro) sendo engenheiro responsável pela análise do planejamento de obras de cooperação do Exército Brasileiro com diversas instituições; autor do livro: “Qualidade e Licitação de Obras Públicas: uma Análise Crítica”, Editora Appris; nomeado em 2011, a convite do Diretor Geral, para exercer cargo em comissão no Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes - DNIT como Coordenador-Geral de Desenvolvimento e Projetos – CGDESP. Secretário de Engenharia e Arquitetura do Ministério Público Federal de 2014 a 2019. Diretor Executivo do DNIT e Presidente do Conselho de Administração da VALEC de 2019 a 2020. Atualmente, Diretor Presidente da VALEC Engenharia, Construções e Ferrovias S.A.



20 de novembro de 2020.

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