''Governança sem gestão de riscos é um conceito inconsistente e sem sentido, pois é a gestão de riscos que fundamenta, tecnicamente, a construção de qualquer modelo de governança. O conhecimento prévio dos riscos da gestão, com base em processos e atividades bem mapeadas e aprimoradas, é que mostra onde devem ser concentradas as maiores atenções dos membros da estrutura de governança de um órgão público ou de uma empresa privada.”
Na sua visão, o que é a governança no setor público?
Eu aprecio o conceito de governança adotado no Decreto nº 9.203, de 22/11/2017, onde governança pública é um “conjunto de mecanismos de liderança, estratégia e controle postos em prática para avaliar, direcionar e monitorar a gestão, com vistas à condução de políticas públicas e à prestação de serviços de interesse da sociedade”. Complementando esse conceito, em relação à liderança, penso que devemos considerar duas categorias básicas de liderança no setor público: a técnica e a política. Como liderança técnica, temos os servidores públicos mais capacitados tanto na dimensão acadêmica como na dimensão prática da gestão (em termos de experiência e de entregas ao longo da carreira), que deveriam sempre ter oportunidade de opinar em questões complexas e orientar as decisões em políticas públicas e gestão governamental. Em suma, penso que as decisões deveriam ser tomadas pelas lideranças técnicas sempre que a ciência e a tecnologia apresentarem soluções satisfatórias para a questão objeto de avaliação.
E, como liderança política, temos os representantes eleitos e os integrantes da chamada “alta gestão” no Poder Executivo, que também devem se comportar de modo íntegro e decidir com base no interesse público, em sua cultura geral pessoal, em sua experiência de vida e em sua intuição sempre que a ciência e a tecnologia não se revelarem suficientes para solução das questões que se apresentam no setor público.
Em termos de estratégia, peca-se muito no setor público justamente por não se valorizar a ciência e a tecnologia, muitas vezes construindo-se políticas públicas, programas e projetos sem evidências empíricas acerca da realidade adversa que se pretende superar – observo, com frequência, políticas públicas construídas sobre alicerces frágeis, com premissas pouco consistentes, como no caso do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que contava com a capacidade de gestão de projetos (pouco desenvolvida ou inexistente) de municípios de médio e pequeno portes para execução de obras públicas de infraestrutura local. O “Guia Prático de Análise ex-Ante para Avaliação de Políticas Públicas”, elaborado em parceria da Casa Civil da Presidência da República (CC/PR) com a Controladoria Geral da União (CGU) e os extintos Ministério da Fazenda (MF) e Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão (MPDG), é um documento de referência bastante desenvolvido, que deveria ser utilizado pelas lideranças em governança no setor público federal. Em relação ao controle, temos o melhor dos três pilares da governança na esfera federal, com a CGU e o TCU, embora esse pilar ainda precise ser construído em bases mais sólidas nos estados e municípios.
O Acórdão nº 2608/2018–TCU–Plenário, por exemplo, apresenta um conjunto de recomendações aos órgãos do Poder Executivo Federal para melhoria da qualidade de suas políticas públicas, programas e projetos de investimentos a partir de seu nascedouro, ainda nas etapas de concepção.
Você tem mais de trinta anos de experiência em governo. Na sua opinião, quais são os principais desafios para a implementação da Governança no setor público?
Com tudo que vi nas últimas três décadas no setor público brasileiro, eu não tenho ilusões e penso que o nosso sistema político-administrativo não é promissor para a governança. Com um sistema fiscal centralizador, que concentra recursos tributários no Orçamento Geral da União (OGU) e não favorece a ideia de federação, mais um sistema político com dezenas de partidos que lutam pela repartição do bolo tributário em benefício de suas bases eleitorais, cargos de direção e assessoramento superior de livre nomeação nos órgãos, e quase 90% de municípios com menos de 50 mil habitantes, muitos sobrevivendo à custa de repasses da União, pensar em governança parece perda de tempo. Entretanto, penso também que podemos avançar um pouco nesse quesito democrático e que o maior desafio será do controle interno e externo, no sentido de exigir que as decisões tanto no nível técnico como político da gestão governamental e das políticas públicas sejam fundamentadas em evidências.
Outro desafio, consequente ao primeiro, será o das escolas de governo, no sentido de (tentar) promover uma sensibilização geral da alta gestão e capacitar os servidores públicos para a gestão de riscos e a governança. Em particular, penso que deveriam oferecer cursos de gestão de riscos e governança para todos os dirigentes políticos e servidores, começando pelos ocupantes dos cargos de Secretário-Executivo (cargo de NES), Secretários (DAS 101.6), Diretores (DAS 101.5) e equivalentes.
É inegável, também, que a CGU e o TCU alavancaram nas últimas duas décadas, ainda que não sem dores, mudanças culturais importantes na gestão pública federal, tornando-a mais profissional e transparente, mas agora precisam elevar a “barra de salto”, em termos de controle de qualidade e melhoria contínua, também nos processos de concepção de políticas públicas e programas de investimentos no setor público federal, num movimento evolutivo que depois poderá ser adotado (como exemplo) para melhorar o desempenho geral dos demais entes federativos. É importante ressaltar-se, a propósito, que governança sem gestão de riscos é um conceito inconsistente e sem sentido, pois é a gestão de riscos que fundamenta, tecnicamente, a construção de qualquer modelo de governança. O conhecimento prévio dos riscos da gestão, com base em processos e atividades bem mapeadas e aprimoradas, é que mostra onde devem ser concentradas as maiores atenções dos membros da estrutura de governança de um órgão público ou de uma empresa privada.
Concluindo, deve-se observar que num cenário de tendência fiscal marcado, de um lado, pela escassez cada vez maior de recursos orçamentários para novos investimentos e, de outro lado, por quadros cada vez menores de servidores públicos nos órgãos, decisões mais inteligentes e bem fundamentadas serão cada vez mais prementes no setor público, o que motiva também um controle mais de base, no nascedouro das políticas públicas, para se identificar os melhores investimentos em infraestrutura, educação, saúde e outras áreas essenciais e assim se evitar desperdícios de recursos escassos.
O Brasil está trabalhando para ser aceito na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Na sua visão, o setor público brasileiro tem muito a evoluir a partir da adesão do país à OCDE?
Sim, penso que, como membro da OCDE, o Brasil terá que sair, necessariamente, de seu relativo (mas histórico) isolamento em relação ao resto do mundo, numa via de integração e interação de mão dupla principalmente com os países mais desenvolvidos.
Com acordos de abertura e integração comercial em nível global, virão oportunidades de aprendizado não somente para as empresas nativas, que necessitarão apertar o passo em direção à modernização em todos os sentidos (de gestão, de tecnologia, de visão de mundo), para se tornarem internacionalmente competitivas, mas também para o setor público brasileiro, que terá que evoluir e encontrar respostas aos enormes desafios que deverão se apresentar aos arcaicos sistemas econômico, político e social em vigor. Em particular, penso que uma abertura maior, mais ousada, do Brasil para a instalação de empresas transnacionais em solo brasileiro, assim como a promoção de empresas nativas para sua imersão em mercados internacionais mais promissores (e competitivos), poderá ser muito benéfica para uma mudança de mentalidade positiva no empresariado e nos governos.
Como o avanço da engenharia do conhecimento e da inteligência artificial (IA) poderão impactar na governança do Estado brasileiro?
O cientista John McCarthy declarou, certa vez, que (tradução nossa): “A inteligência artificial, para ter êxito, necessita de 1,7 Einsteins, dois Maxwells, cinco Faradays e três projetos Manhattan.” (FREEDMAN, David H. Los Hacedores de Cerebros. Tradução de Paulina Matta. Buenos Aires, Ciudad de Mexico, Santiago: Andres Bello, 1994, p. 43.). Essa declaração revela o tamanho do desafio tecnológico que representa o desenvolvimento de soluções com recursos de IA para aplicações práticas.
O conceito de “Inteligência Artificial” (IA) tem origem nas ideias seminais de computação eletrônica de matemáticos do calibre de Alan Turing e John Von Neumann na década de 1930, portanto, confundindo-se com a própria ideia do computador (ou “cérebro”) eletrônico. A IA, por apresentar ambições maiores que a “Engenharia do Conhecimento” (no sentido de substituição do cérebro humano), ao longo de sua história tem emergido e submergido, oscilando entre grandes promessas e grandes frustrações, algumas vezes apoiando modismos (fads) de mercado como ocorre atualmente (quem testou as soluções de IA para atendimento remoto ao cliente de algumas operadoras de telefonia celular e bancos pode avaliar seu nível de eficácia).
Embora sem o ufanismo natural dos jovens, creio que algumas ferramentas tecnológicas consideradas como de IA poderão ser úteis para soluções de problemas complexos no setor público, tais como: Algoritmos Genéticos (GA), Redes Neurais Artificiais (RNA), Lógica Ambígua (Fuzzy Logic), Raciocínio Baseado em Casos (Case-Based Reasoning) e Aprendizado de Máquina (Machine Learning).
Entretanto, conceitos necessitam de clara explanação inicial para se evitar interpretações inadequadas em cada contexto. Em essência, o que se entende por “Engenharia do Conhecimento” é uma disciplina instrumental da “Gestão do Conhecimento”, voltada para o desenvolvimento de sistemas de informações em que “conhecimento” (knowledge) e raciocínio inteligente (reasoning) desempenham papéis centrais. (Ver, por exemplo, a obra de referência: SCHREIBER, Guus; AKKERMANS, Hans; ANJEWIERDEN, Anjo; DE HOOG, Robert; SHADBOLT, Nigel; VAN DE VELDE, Walter; WIELINGA, Bob. Knowledge Engineering and Management: the CommonKADS Methodology. MIT Press, 2000). Obviamente, a Engenharia do Conhecimento, com uso de recursos de Inteligência Artificial (IA), tem um vasto campo de aplicação também no setor público e alguns exemplos exitosos são conhecidos, tal como o sistema de análise automática de prestações de contas de convênios e contratos de repasses de pequenos valores desenvolvido pela CGU (https://www.gov.br/cgu/pt-br/assuntos/noticias/2019/03/governo-federal-expande-analise-automatizada-de-prestacao-de-contas-de-convenios). Esse sistema, que está viabilizando a análise das informações de prestações de contas de modo automático, com economia (a custos mínimos) e razoável segurança em centenas de milhares de processos em papel que atulhavam os órgãos públicos do Poder Executivo Federal, é um exemplo de como a Engenharia do Conhecimento e a Inteligência Artificial poderão contribuir para a governança no setor público.
Como alerta, deve-se manter cautela ao se comentar sobre “conhecimento” e a possibilidade de “Gestão do Conhecimento”, pois, enquanto alguns entendem que “conhecimento” é algo que pode ser explícito, escrito e descrito em qualquer meio (livro, relatório, sistema de banco de dados, etc.), como em geral entendem os profissionais de TIC, outros entendem que a “Gestão do Conhecimento” será sempre indireta e tácita. O conhecimento, para estes últimos, estaria sempre no cérebro das pessoas e resultaria de complexas interações neurais, com resultados que não poderiam ser claramente explícitos. Esse conhecimento resultaria, portanto, da disponibilidade de um ambiente de aprendizado adequado para uso dos colaboradores numa organização (com portais de informações úteis, processos de aprendizado inteligentes e pessoas motivadas), numa abordagem atribuída, inicialmente, ao pensador Peter Senge, com a obra “A Quinta Disciplina: Arte e Prática da Organização que Aprende (no idioma original: The Fifth Discipline: The Art & Practice of The Learning Organization).
Os melhores argumentos técnicos, em minha opinião, estão com os que entendem que o “conhecimento verdadeiro” (um conceito da filosofia fenomenológica) estará sempre entre duas orelhas humanas, sendo os conteúdos armazenados em qualquer meio físico apenas informações ou dados (se armazenados em bancos de dados de sistemas digitais). Essa tese se apoia, por exemplo, numa verificação empírica bastante conhecida: o processo de aprendizado escolar. Caso o conhecimento pudesse ser explícito em textos, todos os alunos teriam êxito imediato com uma simples leitura e não haveria necessidade de professores para mediar seu processo mental de aprendizado. Essa tese também reforça o papel das escolas de governo na capacitação dos servidores públicos.
Qual a definição de inteligência competitiva e como esse conceito pode ser usado na gestão das organizações modernas?
Embora útil também em alguns contextos do setor público, o conceito de “Inteligência Competitiva” (CI) é mais adequado para organizações de mercado, organizações que lutam pela sobrevivência num ambiente econômico de rivalidades. Considerando que as origens formais desse conceito estão na antiga arte dos stratagós (Generais, na Grécia Clássica) e na conhecida obra milenar “A Arte da Guerra” (do General Chinês Sun Tsu), eu aprecio as abordagens de CI de: PRESCOTT, John E. Proven Strategies in Competitive Intelligence. John Willey & Sons, 2001. Contudo, os autores dessa obra não ousam conceituar, precisamente, a “Inteligência Competitiva”, restando buscar-se um conceito simples (até simplório) de outro autor, como segue (tradução nossa): “Inteligência Competitiva é um programa sistemático para coleta e análise de informação sobre as atividades e tendências gerais de negócios de seus competidores para alcance dos objetivos de negócios de sua própria empresa.”. (KAHANER, Larry. Competitive Intelligence. Touchstone, 1997, p. 16).
Esse conceito pode ser adotado, nas organizações modernas, de diversas formas, variando de uma abordagem mais tecnológica, com análise de dados dos concorrentes (com sistemas classe Analytics) para apoio a processos decisórios, até abordagens mais psicológicas, mediante análises dos modelos mentais e decisões dos executivos e dos movimentos das empresas concorrentes no mercado (mais na linha da “Arte da Guerra”, ou da “Teoria dos Jogos”). Obviamente, em termos de limitações para seu emprego nas organizações, encontra-se o fator humano: a prática de CI exige equipes altamente qualificadas em termos técnicos, com domínio adequado de várias disciplinas tais como Raciocínio Lógico, Economia, Contabilidade, Gestão de Negócios, Engenharia de Produção, Matemática, Estatística, Engenharia do Conhecimento, Inteligência Artificial, Comunicação, Marketing, e outras correlatas ao negócio).
O governo federal publicou recentemente o Decreto que institui a Estratégia Federal de Desenvolvimento para o Brasil no período de 2020 a 2031. Como você avalia o planejamento estratégico governamental no país hoje?
Em sistemas políticos democráticos de governo, o planejamento estratégico no estilo tecnocrático sempre vai esbarrar no planejamento político das lideranças no país e no planejamento dos agentes econômicos, e isso é uma consequência natural da própria democracia pluralista, como a que temos no Brasil. Os partidos políticos e seus líderes têm suas próprias agendas e objetivos, que nem sempre coincidem com os conteúdos do planejamento de governo, este resultante de uma concertação de época formalizada entre Poder Executivo e Poder Legislativo, com as limitações de ambos.
Os exemplos de planejamento estratégico governamental e centralizado mais exitosos que conheço são os dos países que se tornaram conhecidos como “tigres asiáticos” (Coreia do Sul, Hong Kong, Singapura e Taiwan), mas esses experimentavam, em seus períodos de “milagre econômico” (de 1960 a 1990), períodos políticos “de exceção” (com “guerra fria” e pouca democracia), um detalhe importante que os economistas não costumam comentar (ver, por exemplo, a obra: CLIFFORD, Mark L. Troubled tiger: businessmen, bureaucrats, and generals in South Korea. M. E. Sharpe, 1998).
Em suma, creio que o planejamento estratégico governamental (e democrático) que temos não vai melhorar muito, ainda que os esforços para tanto sejam meritórios, pois o que chamo de “limites democráticos do planejamento central” estão estabelecidos: i) um sistema de governo federativo bastante complexo, subdividido em três instâncias (ou níveis), em que as competências e responsabilidades de cada instância nem sempre são bem definidas; ii) um sistema político muito fragmentado, com dezenas de partidos de pouca consistência ideológica;
iii) centralismo fiscal, tendo os municípios como “primos pobres” da federação; iv) penúria de milhares de pequenos municípios, que não têm sequer capacidade mínima de gestão para execução de projetos de infraestrutura em nível local; v) pouco conhecimento da realidade dos entes federados pelos planejadores em nível federal; e vi) corrupção, que não contribui para a legitimidade dos representantes políticos e ameaça a credibilidade dos planos aprovados.
É interessante, a propósito, uma leitura do relatório recente de pesquisadores do IPEA sobre a possibilidade do desenvolvimento regional no Brasil a partir do planejamento do governo federal: NETO, Aristides Monteiro; CASTRO, César Nunes de; BRANDÃO, Carlos Antônio (Orgs.). Desenvolvimento regional no Brasil: políticas, estratégias e perspectivas. Rio de Janeiro: IPEA, 2017. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=29412. Acesso em: 8 set. 2020.
Foi publicado recentemente o Decreto do governo federal que institui a Política Nacional de Inovação e dispõe sobre a sua governança. Como você analisa a inovação no setor público brasileiro atualmente?
Como se sabe, o servidor público deve executar suas atividades atendo-se às normas positivas vigentes; consequentemente, inovar apresenta muitos riscos para os gestores responsáveis pelas inovações, que podem ser processados sob acusação de improbidade administrativa se os projetos inovadores causarem prejuízos ao erário. Existe, portanto, uma contradição institucional fundamental na proposta de inovação no setor público da forma como se está propondo: de um lado, o Direito Administrativo impõe ao servidor público uma disciplina normativa ao estilo “burocracia weberiana” (com processos e atividades padronizados), que não abre margem para que ele seja “criativo” e “inovador”; de outro lado, toda inovação envolve risco, e exatamente um risco inaceitável pelos atuais cânones do controle: o de perdas para o erário. Ocorre que sem assunção de risco não há inovação, mas como o risco não pode ser aceito, andamos em círculos, sem encontrar uma saída.
Em síntese, penso que sem antes se resolver satisfatoriamente, em nível normativo, a questão do inerente risco que apresenta a inovação não poderemos avançar nesse tema. Qualquer solução normativa deverá prever o risco de perdas financeiras para o erário decorrentes de prováveis insucessos de projetos de inovações, perdas que deverão ser estimadas, inclusive em termos monetários, e aceitas naturalmente, sem responsabilização dos gestores quando isso ocorrer. Obviamente, também se deverá prever, numa norma dessa natureza, como diferenciar o “erro honesto” (errando, mas querendo acertar) do “erro doloso” (errando com outras intenções) numa avaliação de conduta do gestor inovador.
Estamos vivendo hoje uma grave pandemia mundial. Na sua visão, quais consequências a atual crise deverá trazer para o setor público brasileiro?
Com certeza, a primeira consequência é o agravamento da crise econômica e fiscal anterior à pandemia, com consequências alarmantes sobre as contas públicas. Entretanto, soluções para o reequilíbrio das contas públicas existem e são relativamente simples, pouco exigindo em termos de ação governamental, embora condenáveis socialmente, como a clássica combinação de “imposto inflacionário” e congelamento de salários. Esse tipo de solução penaliza sobretudo a população economicamente mais carente, mas tem se revelado eficaz ao longo da história do Brasil, sempre resolvendo os problemas fiscais dos entes federados em períodos de crises (às vezes combinado, mas apenas coincidentemente, com períodos de crescimento econômico e de receitas para o setor público).
Outra consequência será uma drástica redução do poder de investimento estatal ao estilo “desenvolvimentista”, provocando maior interesse dos governos em Parcerias Público-Privadas (PPPs), ainda que num primeiro momento de modo desesperado e pouco técnico. Como uma “luz no fim do túnel”, acredito nas oportunidades que poderão se abrir à economia brasileira com a adesão do país à OCDE, mas os resultados também dependerão de uma mudança de mentalidade bastante dramática do empresariado nativo e dos economistas “desenvolvimentistas”, abrindo mão do histórico protecionismo em prol de uma inserção mais ousada das empresas nos mercados globais.
O governo federal discute há meses a realização de uma ampla Reforma Administrativa. O que pode ser feito para que o setor público brasileiro supere a atual crise de legitimidade?
Considerando a extensão e heterogeneidade dos poderes públicos no Brasil, quando se menciona “setor público brasileiro”, deve-se identificar de qual Poder da República e de qual instância de governo estamos falando. Caso se esteja falando do setor público brasileiro como um todo, a questão é muito complexa, pois enquanto no setor público federal os inimigos da legitimidade estão sendo combatidos (corrupção e incapacidade de realização), nos entes descentralizados não se entende que esse tema tenha sido priorizado. Em síntese, o que pode ser feito de imediato é se tentar “exportar” o modelo de combate à corrupção da União aos entes federados, pois políticas para o fortalecimento da capacidade de gestão de estados e municípios exigiria uma ampla reforma constitucional, com um novo modelo fiscal federativo, atribuindo-se um maior naco da arrecadação tributária principalmente aos municípios.
Em relação aos tópicos de reformas na área de pessoal, pela experiência de ter participado da última reforma nesse sentido, no governo federal (na década de 1990), penso que são pouco produtivas as medidas de “arrocho”, exigindo um capital político enorme do governo para o alcance de resultados pouco significativos na prática. Contudo, penso que algumas medidas na área de pessoal poderão apresentar resultados interessantes para o governo e para a sociedade, tais como:
a) Implantação de um sistema de avaliação de desempenho efetiva dos servidores, e não apenas “pro forma” (para percepção de gratificações), associado a uma política de real valorização dos mais capazes, especialmente em processos seletivos para cargos de direção de níveis mais altos (como existe nos sistemas de mérito da carreira militar e da carreira dos diplomatas brasileiros);
b) Alteração dramática nos conteúdos dos concursos públicos: exigindo-se mais conhecimentos técnicos de disciplinas instrumentais, no sentido de se contar com servidores públicos com capacidade de trabalho mais próxima das reais necessidades dos órgãos para implementação de suas estratégias em políticas públicas e programas de governo;
c) Descentralização maior dos processos de estruturação organizacional: mediante emenda constitucional que permita maior autonomia para os titulares dos órgãos nessa estruturação, ainda que dentro de padrões científicos e técnicos compulsórios e com as necessárias restrições de despesas (o conceito de “DAS Unitário” poderia ser adotado para conter a eventual explosão de estruturas).
Quais serão, na sua visão, os principais desafios para a implementação da gestão por competências no setor público brasileiro?
O desafios são vários, todos exigindo mudanças na cultura política vigente, tais como: i) implantação de sistemas adequados para avaliação de desempenho real dos servidores (e não apenas “pro forma”, para receber gratificação) e dos dirigentes até o nível de Secretário-Executivo ou equivalente; ii) utilização, de fato, de bancos de talentos existentes em processos seletivos para cargos de Direção e Assessoramento Superiores - DAS; iii) uso compulsório de processos seletivos públicos e transparentes para cargos do grupo DAS, em alguns casos abrindo oportunidades para candidatos do mercado (mas com as devidas motivações, que também deverão ser publicadas); iv) mudanças dramáticas nos conteúdos dos concursos públicos para cargos de nível superior, concentrando pesos maiores em requisitos mais práticos e menos acadêmicos, tais como gestão de portfólio, programas e projetos, gestão de processos de negócio, Inteligência de Negócio (Business Intelligence - BI), concepção e uso de sistemas de informações, etc.; v) mapeamento e aprimoramento de processos e atividades de negócio em cada órgão com metodologia Business ProcessManagement (BPM), como base técnica para a “Gestão por Competências” e para apresentação de demandas dos órgãos por novos quadros e estruturas organizacionais (atualmente, não há metodologia científica desenvolvida para tanto, apenas normas de conformidade processual, como o Decreto nº 9.739, de 28/03/2019); vi) desenvolvimento e ampla publicação de uma base de conhecimento científico e técnico, no órgão central do SIPEC, para suportar as decisões sobre estruturas organizacionais, tornando esse processo mais técnico e transparente; vii) investimentos mais consistentes das escolas de governo na capacitação de pessoal, com maior concentração de cursos e vagas para atendimento das demandas estratégicas dos órgãos.
Ethel Airton Capuano é Doutor em Ciência da Informação pela Universidade de Brasília (com tese premiada em 2011 pelo ENANCIB), Mestre em Gestão do Conhecimento e da Tecnologia da Informação e Especialista em Redes de Computadores pela Universidade Católica de Brasília, Engenheiro Civil pela Universidade Estadual de Maringá e Licenciado em Física e Matemática pela Universidade Católica de Brasília. É também servidor público federal, membro da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental desde 1990, egresso da Escola Nacional de Administração Pública. Com 5 anos de experiência no setor privado (como Engenheiro Civil) e 38 anos de experiência no setor público (nos níveis federal e municipal), tem atuado, nos últimos anos, em: elaboração de planos e projetos e gestão de concessões de florestas públicas para o desenvolvimento sustentável da Amazônia; pesquisas para modelagem, monitoramento e controle de políticas públicas e projetos para o desenvolvimento regional e o desenvolvimento das cidades; representante de governo no board de governança do Fundo de Investimentos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FI-FGTS); avaliação e modelagem de processos de negócio; elaboração de modelos de governança para organizações públicas; modelagem e desenvolvimento de sistemas de informações computacionais para suporte à gestão pública.
04 de dezembro de 2020.
Comments